o desenvolvimento da identidade em Jesus: a singularidade


Este é um de cinco textos da série "O desenvolvimento da identidade em Jesus". Resolvi tratar o tema da "identidade" pois é a última moda gospel, junto com "paternidade" e afins... Isso em decorrência da necessidade de resposta às demandas do nosso próprio tempo. Mas, o que ocorre na maioria das vezes é que se mudam os temas, mas, não os discursos. Explico. A alguns anos atrás a tônica era o "avivamento", e o que era o "avivamento"? Inchaço evangélico e experiências "carismáticas". Igrejas evangélicas pipocaram e muita gente viu anjo, recebeu dente de ouro, blá, blá, blá, blá... Que era de fato o "avivamento" senão a auto afirmação de um grupo emergente que buscava tomava espaços cada vez maiores no cenário nacional, na expectativa de "dominar o país", "bancada evangélica", representação de massa, poder, poder... Agora, após anos, o segmento religioso evangélico continua a crescer mas ninguém fala mais de "avivamento" porque? Porque não se sabe mais de que "evangélicos" estamos falando, não há uma identidade. Cresceram, mas, sem saber quem são! Alguns se perdem em novidades eclesiológicas (MDA, G12, etc), outros se agarram à tradição. Polarizações à parte, a verdade é que ninguém sabe ao certo quem é de fato. Se no âmbito geral não se sabe quem é, muito menos saberão em relação à sua identidade no aspecto individual. Uma "igreja" que não sabe quem é não pode afirmar ao fiel sua identidade. De modo que, o ensino da "identidade cristã" hoje, nada mais é do que a catequese institucional do que cada "igreja" pensa a cerca de si mesma num determinado contexto sócio-cultural. E que, via de regra, não dá subsídio nenhum para que as pessoas tenham suas questões mais essenciais respondidas. Exemplo: Na banda de cá, o cara agora é chefe de célula, supervisor, blá, blá, blá, e viciado na prática homossexual. Na banda de lá, o pastor está ensinando as cinco bases do calvinismo, a TULIP, e  a dona Maria só quer saber o que fazer com o marido que violenta a ela e às filhas. Na toada do "avivamento" imaginavam que pessoas seriam formadas por "ondas espirituais", não aconteceu, surgiram apenas "evangélicos". Hoje se espera que as fórmulas de discipulado e células (cartilhas e reuniões) formem pessoas sadias... não acontecerá! Seu estado tornar-se-á sete vezes pior que o anterior, eis o que acontecerá a esta geração. 

Identidade é a questão... por vou trazer alguns princípios de Jesus a respeito. Este é o primeiro da série: a singularidade.

Marcos descreve uma das mais intrigantes e belas intervenções de Jesus na vida de um ser humano, a cura de um surdo-mudo nas imediações de Sidon em direção à Galileia (Marcos 7.31-37). O texto em si, pode ser abordado de inúmeras perspectivas, contudo, gostaria de pensar a respeito do processo de desenvolvimento humano a partir desse milagre de Jesus. De modo que, por meio dessa cura, Jesus explicita como Deus planejou o processo de formação da identidade de uma pessoa; ou ainda, como se dá o processo ideal da formação da identidade. Esta abordagem é possível porque, primeiro: o homem curado, segundo o texto grego, não era incapaz de produzir sons (aphona), a questão era que os sons que ele produzia não tinham sentido. O texto diz que ele era mogilálon, tinha "dificuldades de fala", ou seja, os sons que produzia eram sem sentido pois não possuía a construção mental necessária para o desenvolvimento da comunicação verbal. Logo a questão não era fisiológica e sim psicológica. Ele não tinha o desenvolvimento necessário (como uma criança) para realizar um discurso verbal. Por isso, e em segundo lugar, Jesus se utiliza de linguagem simbólica não verbal, que é a linguagem do período formativo dos pilares da identidade humana. É a linguagem que o bebê compreende, que o situa num mundo novo, se trata, portanto, da comunicação que definirá grande parte de sua identidade, as bases dela, por meio da linguagem não verbal. Portanto, Jesus se vale de uma comunicação arquetípica, que transcende aos signos do discurso verbal e às construções psíquicas do estágio da fala, do discurso abstrato.  

E ele, tornando a sair dos termos de Tiro e de Sidom, foi até ao mar da Galileia, pelos confins de Decápolis. E trouxeram-lhe um surdo, que falava dificilmente; e rogaram-lhe que pusesse a mão sobre ele. E, tirando-o à parte, de entre a multidão, pôs-lhe os dedos nos ouvidos; e, cuspindo, tocou-lhe na língua. E, levantando os olhos ao céu, suspirou, e disse: Efatá; isto é, Abre-te. E logo se abriram os seus ouvidos, e a prisão da língua se desfez, e falava perfeitamente.E ordenou-lhes que a ninguém o dissessem; mas, quanto mais lhos proibia, tanto mais o divulgavam. E, admirando-se sobremaneira, diziam: Tudo faz bem; faz ouvir os surdos e falar os mudos. (Marcos 7:31-37)

Portanto, de acordo com a ação de Jesus podemos perceber cinco elementos fundamentais no processo de desenvolvimento de uma identidade sadia. No entanto, antes de qualquer coisa, precisamos observar que o primeiro estágio do processo de formação da identidade se dá por meio da relação com o ambiente. E, em sendo assim, os pais são figuras fundamentais na formação da identidade, uma vez que, são eles que determinam o ambiente em que a criança desenvolverá a compreensão de quem ela é, e de como é o "mundo". Os pais afirmam, sem palavras, quem somos, e como é a experiência do existir. Ou seja, ninguém nasce pronto! Você tem alguma dúvida disso? Todo processo de identidade é construído. Nascemos com saúde, mas, precisamos aprender viver sãos. Nascemos belos, mas, precisamos aprender a apreciar a beleza. Nascemos machos, fêmeas, precisamos aprender a ser homens e mulheres segundo Deus.   

" tirando-o à parte, de entre a multidão"

1. Primeira base de comunicação para a formação de uma identidade sadia é a comunicação da singularidade. Imagine-se uma pessoa com deficiência auditiva em meio a uma multidão, qual a sensação? Perdida! Sim, isso mesmo, perdida: "o que está acontecendo"? Principalmente se você estivesse numa sociedade com muito pouca consciência em relação às pessoas com deficiências físicas, sobretudo, numa sociedade na qual a base da relação fosse, quase que exclusivamente, a via do discurso. Pois bem, Jesus inicia a comunicação em esse homem afirmando sua singularidade. Que significa isso? Tudo o que aquele homem podia compreender em termos de comunicação era sensorial, o olhar, as fisionomias, os gestos, os cheiros, o toque. De maneira que, quando Jesus o tira do meio da multidão, ele está comunicando claramente o estabelecimento de uma relação. Mais do que isso, uma relação, trocas afetivas, possibilidade de auto percepção e discernimento do outro. Estabelece confiança. Jesus imprime naquele homem um sentimento de segurança, auto percepção, percepção do outro, conceitos de similaridade e particularidade. A singularidade é: o fundamento emocional que nos chega por meio comunicação externa, que se estabelece pela relação afetiva (e primariamente sensorial), de que existimos como seres humanos, amados e amparados. E que, portanto, podemos existir com dignidade no mundo. Pois, paradoxalmente nós só sabemos que existimos como seres humanos quando outros afirmam que somos seres humanos. Nós só conseguimos nos reconhecer na perspectiva da nossa humanidade se ela nos for afirmada pelo outro. Sabemos que é possível existir no mundo quando somos recebidos nos braços de alguém que nos acolha, que compartilhe o calor, o braço. Alguém que não recebe a comunicação da sua singularidade na formação de sua identidade não pode reconhecer a própria dignidade, valor, tampouco, reconhecerá a dignidade do outro. Em suma, a singularidade é a comunicação pelos olhos do outro, daquele que nos segura nos braços, que anda conosco, de que que existimos como seres humanos, dignos e valorosos, que essa é nossa identidade. Por isso Deus afirma a nosso respeito, o tempo todo: "este é meu filho!". Sobretudo, a singularidade confere ao ser a segurança de si mesmo, recebe a confiança, como que uma permissão para existir no mundo sem ser esmagado por ele.

Por isso a presença cuidadora dos pais nos dois primeiros anos de vida de uma criança é essencial. Eles serão a fonte de 99% da comunicação não verbal que dará as bases da singularidade da criança. A ausência dos pais na comunicação da singularidade na formação da identidade de uma pessoa é tão devastadora que é até difícil prever seus desdobramentos, alguns exemplos:

Uma pessoa que não tem a singularidade como fundamento da identidade: 

  • terá mais propensão à depressão, pois, não terá estrutura psicológica para lhe dar com um mundo lhe será demasiado agressivo e opressor;
  • apresentará baixa auto estima, pois não se reconhece em dignidade; 
  • tampouco reconhece a dignidade do outro; será egoísta, dificuldade de empatia;
  • extrema dificuldade com limites, o que é meu, o que é do outro;
  • relacionar-se-á a partir de uma mentalidade utilitária-consumista dos outros, na busca de extrair auto afirmação e segurança;
  • muita propensão a desvios da sexualidade na busca por afirmação da identidade, bem com maior chance de desenvolver vícios sexuais e de outras naturezas;
  • ensimesmado e evasivo em relação aos outros, muita dificuldade de falar de si, partilhar emoções e experiências, propensão a ter vida dupla, tripla (fragmentação do ser); 
Repito: A singularidade é: o fundamento emocional que nos chega por meio comunicação externa, que se estabelece pela relação afetiva (e primariamente sensorial), de que existimos como seres humanos, amados e amparados. E que, portanto, podemos existir com dignidade no mundo. Pois, paradoxalmente nós só sabemos que existimos como seres humanos quando outros afirmam que somos seres humanos. Nós só conseguimos nos reconhecer na perspectiva da nossa humanidade se ela nos for afirmada pelo outro. Portanto, o que é que você tem comunicado ao outro? Pais, o que vocês tem comunicado a seus filhos? Somo responsáveis uns pelos outros. O suicídio de um é o homicídio de todos. Seja ele emocional ou físico. A dor de um é a doença de todos. Entendam: amor, amor, amor, eis o critério da vida e do juízo que pesa sobre todos!!! 


Contudo, mesmo que seus pais não tenham lhe comunicado a singularidade, a boa notícia é que Jesus, ainda hoje, continua afirmando a todo momento nossa singularidade, nossa dignidade e nosso valor. Ele olha quem somos. Caminha conosco em trocas de afeto, pisando sobre o mesmo chão. Nos tira da multidão das nossas fragmentações, da balburdia das vozes dissonantes que gritam na alma. E no diz: "Tu és meu filho!"

Timóteo



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