a fé das nossas projeções

No livro do Gênesis, capítulo 16 é narrada a história de Agar, serva de Abraão,  a qual resumo agora:

Deus fizera a Abraão promessa de que a partir dele se ergueria uma grande nação. O que seria assegurado pelo nascimento de um filho. Contudo, o tempo passara e o filho prometido não vinha. Sarai era estéril. Diante disso, Sarai propõe a Abraão que tome sua serva Agar e que se deite com ela para que, em nascendo um filho a promessa de Deus pudesse ser cumprida. Da escrava nasce um filho. E não demora para que problemas surjam entre Sarai e a Agar, que após uma vida de servidão e complexos de inferioridade, percebe no filho a oportunidade de afirmar-se socialmente na família de Abraão. A tensão cresce, a ponto de Agar fugir de casa com seu filho por conta dos maus tratos de Sarai. Em meio à fuga, o anjo do Senhor aparece a Agar e diz a ela para que volte à casa de Abraão e se submeta á mão de Sarai. Diz ainda que ela está grávida e que seu filho seria um homem valoroso que se estabeleceria entre seus irmãos. Diante disso Agar tem sua primeira experiência com o Deus de Abraão, e o define como "o Deus que vê", posto que, aos olhos dela, Deus havia visto sua situação e tinha vindo em seu favor.

 Muito embora o anjo do Senhor tenha dito: "Deus ouviu sua aflição" (hebraico: miséria, pobreza infligida), apresentando o Senhor como o "Deus que ouve". Tanto que o nome que ela deveria dar ao seu filho, Ismael, significa "Deus ouve". Todavia é compreensível que Agar tenha concebido o Deus que a socorreu como o "Deus que vê". A palavra para hebraica para "vê", é a palavra usada como sinônima para profeta, ou seja, aquele que recebe a comunicação (de Deus) e age de acordo com o que ouviu. Para Agar Deus agira em favor dela em decorrência de ter visto sua situação, e por causa da situação ele agiu. Em outras palavras, o deus de Agar é um deus reativo. Um deus que age em razão das causas que se são apresentadas. É um Deus que "vê", e Age de acordo com o que vê, ou o que lhe é apresentado.

É um deus freudiano, um deus que nada mais é do que a projeção de Agar, assim como a maioria dos deuses que se apresentam nas experiências religiosas humanas, um deus moldado pelas nossas angústias e que está para atendê-las, um deus para nos livrar do sentimento de abandono, um deus para dar sentido aos absurdos da existência. E como bem concluiu Freud, esse Deus não existe.

Esse Deus é o deus da fé evangélica e da maioria dos cristãos, um deus que está para atendê-los, aguardando ansiosamente por suas orações para que possa se levantar do trono e agir! Um deus que olha indiferente ao sofrimento humano até que alguma ação religiosa da parte do ser humano atenda seu humor caprichoso e então ele resolva reagir a isso. Diante disso os crentes passa a procurar métodos e meios de otimizar a ação desse deus reativo, campanhas, jejuns, auto sacrifícios espirituais que movam a mão de deus em seu favor. É uma macuuuuuummmmmmbbaaaaaaaaaaria! Feiticeiros em nome de Jesus! Que tem a pretensão de conceber que Deus é uma força à disposição de suas mesquinharias. É o deus que vai fazer minha igreja crescer, o deus que não vai deixar que chova no acampamento, o deus que vai curar no dia da campanha, o deus que vai pagar minhas contas quando eu estourar o cartão e der cheque sem fundo (que na linguagem sacra é "prender o devorador")... basta orar e deus se moverá em nosso favor! É a fé "Harry Potter". A fé do terreiro, só que ao invés de trazer galinha preta oferecemos, mediados por nossas instituições religiosas, nossos dinheiro, músicas e todo tipo de sacrifício espiritual como moeda de troca do favor de Deus para que nos livre das nossas situações, para que nos lance numa dimensão mágica da existência no qual não somos responsabilizados por nossas ações. Uma fé mágica.

Essa é a fé de Agar, a fé num deus que vê. É a fé da maioria dos evangélicos em nossos dias.  A fé num ídolo das nossas projeções mesquinhas em nossos complexos de inferioridade e solidão. Ora, se o Senhor estivesse de fato preocupado com a situação de Agar não teria mandado que ela retornasse e se submetesse novamente sob as mãos de Sarai. Deus não é um deus que vê, é um Deus que "ouve". Não é um deus reativo, é um Deus que trabalha em favor dos seus enquanto ainda dormem! Mais ainda, É um Deus que ouve nossas misérias, nossa aflição. E não são as situações que nos afligem, mas nossa pobreza espiritual, a miséria da nossa alma, são essas coisas que nos esmagam o ser, são esses elementos em nós que infligem sofrimento aos outros. Elementos que Deus ouve, e ouve para curá-lo, pois, em sendo curados, nos libertam para curar nossas situações para a vida.

Essa é a primeira experiência de fé de Agar, uma fé infantilizada. No entanto, não para por aí, ela viria a encontrar-se mais tarde com o Deus que ouve e conhecê-lo como Ele é, para além das suas projeções. No próximo texto!

No Deus que nos ouve em nossas misérias e complexos, para nos libertar de uma fé idolátrica.
Timóteo


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