o colapso da fé no "deus que vê"



Aproximadamente 14 aos após o encontro de Agar com o Senhor, encontro no qual ela concebeu para si mesma um "deus que vê", Abrão dá uma festa para seu filho recém nascido Isaque, Sara observa que Ismael caçoa de Isaque e se dá conta de que o filho da escrava Agar haveria de herdar junto como Isaque, diante disso ela manda a Abrão que mande embora a serva com seu filho, para que não viesse a partilhar da herança de Isaque. Diante disso Abrão se sente extremamente condoído pela situação, "afinal era seu filho", no entanto, o Senhor lhe comunica que não deveria ver isso como mau, mas que atendesse o pedido de Sara. No outro dia de madrugada, Abrão toma o menino, prepara um odre com água e pão e os entrega a Agar e a despede. Ela sai andando errante pelo deserto de Berseba.

Obviamente que ao ser despedida por Abrão todas as suas expectativas quanto a sua vida e a vida de seu filho ruíram. Pois Agar se alimentara por 14 anos da promessa de que seu filho seria uma grande nação, e que ela deixaria de ser serva para ser uma matriarca de um clã. Mais do que isso, sua teologia acabara de colapsar, pois o "deus que vê" não estava vendo todas as suas esperanças serem aniquiladas. A situação piora quando, na caminhada errante pelo deserto, acabam a água e o pão, bem como suas forças e as do menino. O texto narra que, em seu desespero, Agar procura um arbusto (que medem cerca de 50cm de altura nos desertos palestinos) para prover algum conforto a seu filho enquanto aguarda a morte, e não suportando ver tal situação ela caminha em direção oposta até não poder mais vê-lo. Senta-se e chora desesperadamente. Sua teologia, sua religião e espiritualidade fundamentadas no "deus que vê" acabam de ser esmagadas pelas contingências da vida. Certamente ela deva ter se perguntado, e perguntado para Deus "onde está, que não vê minha situação, meu sofrimento!".

A espiritualidade fundamentada num deus que está para nos atender em nossas circunstâncias não suporta o teste da vida. É impossível fazer a caminhada da existência com nossos recursos unicamente, com nosso pão e água, com a teologia que construímos a partir das nossas impressões egoístas e das nossas projeções. Chega um momento em que nossos recursos e nossas forças se esvaem, percebemos que não temos substrato na alma para dar significado ao sofrimento e às situações que nos assolam. E passamos a ouvir e a repetir para nós mesmos alguns mantras evangélicos: "deus tem um propósito"; "deus tá querendo te ensinar algo"; "é preciso confessar o pecado, é a mão de deus!", e por aí vai... Mas, qualquer pessoa minimamente sincera tem que admitir que nenhuma dessas soluções podem ser verdade, pois não trazem significado ao sofrimento e à perplexidade diante das contingências da vida que tiram nosso chão de sob os pés. Situações como a perda de entes queridos, a traição, falências econômicas e morais, doenças, tragédias. Diante disso somos obrigados a reformular nossa concepção de Deus. 

Nesse sentido, quando o "deus que vê" é esmagado pela vida, algumas tentativas de responder ao sofrimento humano estão na moda. A primeira delas é o teísmo: "se Deus vê  a tragédia humana e nada faz é porque não se importa". Deus criou o mundo e o abandonou. O mundo passa a ser regido por suas leis naturais, como um relógio e Deus nem precisa "dar corda". É um deus completamente ausente e alheio aos dramas humanos,e a nós só nos cabe cantar o hino "eu sou do povo, eu sou um zé ninguém. Aqui em baixo as leis são diferentes!". Ora, se Deus de fato está alheio aos dramas humanos então a vida humana nada vale. Se Deus não está no mundo, então, que vença o mais forte. 

Outra proposta é o ateísmo, cujo argumento básico é: Deus não existe. E se existe e não pode fazer nada não é Deus. Porque e se tem algo que Deus não possa fazer então ele não é Deus. E como disse um dos Irmãos Karamazov de Dostoiévisk, "se Deus não existe, tudo é permitido". Somos fruto do acaso cósmico, casa pessoa é seu próprio centro de gravidade, casa pessoa gera sua ética e moral. Tem gente que pensa que a vida vale menos que um tênis, tem gente que pensa que o ápice da vida é o sexo, a viagem, o trabalho. E se Deus não existe, elas estão certas, pois isso é o máximo que a existência pode lhes dar.
Há, ainda os mais otimistas que entendem que as tragédias humanas decorrem do fato de não sabermos usar nossas capacidades mentais para fazer o universo funcionar a nosso favor. Esse é o pessoal que acredita que Deus é o universo e o universo é Deus, bem a moda do deus de Espinosa (filósofo racionalista). Sendo assim, é necessário conectar-se ao universo (entrar em nirvana) para compreender os sentidos da vida. Daí nascem correntes de pesamento como a da Nova Era, que é a base para bestsellers (eu diria beastsellers  kkk) como "O Segredo". Ou seja, sofremos porque não sabemos utilizar nossos pensamentos para viver como deveríamos e com o que queríamos. Ou seja, precisamos aprender a manipular as forças espirituais com nossa mente. Macumba psicológica. Uma vez um amigo veio com essa conversa e eu disse, "precisamos ensinar as pessoas do Sudão a pensar em comida e recursos. Precisamos ensinar às mães palestinas a não pensar tanto em bombas, porque suas crianças estão morrendo." 

Fato é que nenhuma dessas respostas, nem as dos crentes tem nos ajudado a conhecer a Deus diante da perplexidade da existência. Nenhuma religião pode dar significado para o sofrimento humano de maneira satisfatória porque todas elas são fundamentadas no "deus que vê". Contudo, tenho constatado que as pessoas que menos sabem experimentar a realidade da existência são os evangélicos, porque criaram para si um Jesus triunfalista e que, necessariamente tem que os manter no monte da transfiguração, tirá-los da realidade para que possam suportar o toque do alarme na segunda feira. São pessoas que creem que não tem responsabilidade alguma sobre a vida real e tudo o que lhe é aparentemente contrário é coisa do diabo!  E ainda dizem que isso é testemunho, porque são diferentes do mundo. Precisamos conhecer o "Deus que ouve", o Jesus do Evangelho!


Timóteo







  



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