o Deus que ouve

Permita-me recordar onde paramos... (Gen 21) Ainda bem cedo, Abraão desperta Agar e seu filho, dá-lhe um odre com água e pão. Coloca o menino nos ombros de Agar e a manda embora. O sol não nascera ainda.  Agar, imersa em perplexidade e absurdo caminha sem direção pelo deserto de Berseba sem condição de responder ás perguntas do menino que pediam por pequenas certezas. O medo que já se instalara no coração de Agar, podia ser percebido no passo apressado e empoeirado do menino na tentativa de acompanhar a caminhada apressada da mãe. Há pressa não em chegar, mas em fugir da perplexidade. A certa altura acabam a água e o pão, bem como suas forças e as do menino. Ela já não consegue dar esperança a seu filho, entra em desespero, o menino se assusta, jamais vira sua mãe assim. A criança chora, sem ao certo saber por que. A mãe sabe que todos seus recursos se foram. Agar toma o menino, sem olhá-lo nos olhos, o coloca sob um arbusto, vira as costas e começa a caminhar sob o olhar consternado do filho. Ele chama pela mãe sem compreender sua atitude desesperada. O desespero de uma mãe que não consegue ver morrer seu filho. Cada apelo angustiado do filho é como uma faca em seu peito, mas ela não chora. Depois de alguns passos, o silêncio... Ela grita. Desaba e chora. Impotente, espera que a morte cure a dor.

E a pergunta, não relatada, mas certamente feita, de Agar é: onde está o “deus que me vê”, como poderia estar de olhos fechados para esta situação extrema? Como pode permiti-la?

Nesse momento, o texto diz que Deus ouviu o choro da criança, e do céu, o anjo fala a Agar, “Não temas, pois Deus ouviu os gritos do menino. Ergue-te, levanta a criança, pois farei dela uma grande nação.” Deus ouviu. A mesma palavra é dita na primeira experiência de Agar no deserto de Sur, “Deus ouviu sua miséria”.

Deus não é o “deus que vê” situações, que está para livrar pessoas das contingências da existência como pensava Agar. Esse é um reducionismo egoísta do Senhor e de sua ação, trata-se de uma fé infantil. Não estou afirmando com isso que Deus não tenha interesse em intervir nas situações e dramas humanos, muito menos que ele não o faça. Estou afirmando, convictamente, que concebê-Lo como o deus que resolve nossas situações é desconhecê-Lo. E todo desconhecimento de Deus destrói o ser humano (como vimos no texto anterior).

Deus é Deus que ouve a miséria do ser humano. Ele atenta, se aproxima e se relaciona conosco em nossa miséria para nos tirar dela. Mais do que nos tirar da miséria, Deus está interessado em tirar a miséria de nós. Pois em fazendo assim, tirando a miséria de dentro de nós, nós mesmos teremos condições de nos emanciparmos de nossas situações e ainda mais, teremos condições de tirar outras pessoas de suas misérias. Pense, por exemplo, o planeta possui capacidade para alimentar mais que o dobro da população sobre a Terra, com abundância. No entanto, mais de 80% das pessoas do planeta vivem situação de miséria, vivendo com menos de 1 dólar por dia. Obviamente que o problema não é a pobreza do planeta, mas, a nossa miséria espiritual. Deus nos livra da nossa miséria para livramos outros de situações miseráveis. Deus trata daquilo que é eterno para que possamos tratar da história, do que é contingente.

Primeiro que Deus ouviu o menino, não Agar. Pois Agar aguardava pelo “deus que vê”. Por um deus que a livrasse das contingências. Se Deus o fizesse lançaria Agar num mar de ignorância, sem jamais conhecer a Deus de verdade. Reforçando sua fé no deus de suas projeções egoístas. Agar cria que Deus estava para colocá-la em “situações de vitória”. Deus era seu aliado em suas intenções egoístas. Era assim que tinha entendido a promessa de que seu filho seria uma grande nação. Pensava que Deus era seu aliado para diminuir a importância de Sara. No entanto, o Senhor permite que todas suas expectativas e concepções colapsem. Quando acaba o pão, a água e as forças o “deus que vê” perde o sentido. O ídolo se desfaz. O menino foi ouvido. Ele nada tinha. É no colapso dos nossos recursos que somos levados abandonarmos nossas convicções mais profundas a respeito de Deus para simplesmente aprender Dele sobre Ele mesmo. Deus permite o deserto para nos livrar de nós mesmos. Deus permite o deserto para que o conheçamos. O processo de conhecimento de Deus, necessariamente passa pela angústia.

 O texto diz que, “então Deus abriu os olhos de Agar para que ela visse o poço”, o poço que até então ela não havia enxergado. Poderia dar vários motivos para a cegueira de Agar, mas basta dizer que tendo sido ultrapassada a concepção do “deus que vê” pela experiência da angústia e da impotência, agora ela tem condições de enxergar a história e as situações como Deus enxerga. Deus nos livra das nossas concepções miseráveis para vermos a história como ele vê. Não somos nós que chamamos Deus para atuar na nossa história, é ele que nos convida para ver o que tem feito. Perceber que todas as coisas estão em suas mãos, desde o serpentear dos rios em seus leitos até o curso dos governos e das nações. E tendo visto a ação de Deus na história podemos participar dela.

E Deus os fez habitar o deserto e Ismael se tornou guerreiro e uma grande nação. Porque o Deus que ouve pode nos estabelecer nos lugares mais improváveis, em meio ás situações mais inóspitas e hostis da terra quando entendemos que ele é Deus para além das contingências. Ele faz a estéril ser mãe de muitos filhos, põe riso na boca de quem não tinha razão para levantar, faz saltar o idoso e correr o cansado, abate o multimilionário lançando-o em terror, afugenta os líderes do mundo. Ele desnuda os fundamentos da terra. Subverte a ordem dos poderosos, dá força ao fraco e ao oprimido, os faz vencer sem que tenham usado a espada. Alimenta multidões sem que tenham lançado uma semente sequer. Dá voz como de trovão ao tímido, coragem ao titubeante. Assola os sábios em perplexidade, lança em dúvidas intermináveis os mestres. Faz nascer uma nação em meio às improbabilidades do deserto porque ele é Deus. O Deus que ouve nossas misérias para que o conheçamos e tenhamos condições de transformar a história, a nossa e a dos outros.  

Timóteo


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